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sábado, 27 de julho de 2013

Papa propõe "diálogo, diálogo, diálogo"


PAPA FRANCISCO NO BRASIL






Teatro Municipal: Papa fala a artistas, intelectuais, religiosos, empresários e demais autoridades


Excelências, senhoras e senhores, bom dia.

Agradeço a Deus pela possibilidade de me encontrar com tão respeitável representação dos responsáveis políticos e diplomáticos, culturais e religiosos, acadêmicos e empresariais deste Brasil imenso. Saúdo cordialmente a todos e lhes expresso o meu reconhecimento. 
Queria lhes falar usando a bela língua portuguesa de vocês mas, para poder me expressar melhor, manifestando o que trago no coração, prefiro falar em castelhano. Peço-vos a cortesia de me perdoar. 

Agradeço as amáveis palavras de boas vindas e de apresentação de Dom Orani e do jovem Walmyr Júnior, por sua apresentação e testemunho. Nas senhoras e nos senhores, vejo a memória e a esperança: a memória do caminho e da consciência da sua Pátria e a esperança que esta, aberta à luz que irradia do Evangelho de Jesus Cristo, possa continuar a desenvolver-se no pleno respeito dos princípios éticos fundados na dignidade transcendente da pessoa.

Quem tem um papel de responsabilidade, em uma Nação, são chamados a enfrentar o futuro "com os olhos calmos de quem sabe ver a verdade", como dizia o pensador brasileiro Alceu Amoroso Lima. Queria considerar três aspectos deste olhar calmo, sereno e sábio: primeiro, a originalidade de uma tradição cultural; segundo, a responsabilidade solidária para construir o futuro; e terceiro, o diálogo construtivo para encarar o presente.

1. Em primeiro lugar, é importante valorizar a originalidade dinâmica que caracteriza a cultura brasileira, com a sua extraordinária capacidade para integrar elementos diversos. O sentir comum de um povo, as bases do seu pensamento e da sua criatividade, os princípios fundamentais da sua vida, os critérios de juízo sobre as prioridades, sobre as normas de ação, assentam e crescem numa visão integral da pessoa humana. Esta visão do homem e da vida, tal como a fez própria o povo brasileiro, muito recebeu da seiva do Evangelho através da Igreja Católica: primeiramente a fé em Jesus Cristo, no amor de Deu,s e a fraternidade com o próximo. Mas a riqueza desta seiva deve ser plenamente valorizada. Ela pode fecundar um processo cultural fiel à identidade brasileira e construtor de um futuro melhor para todos. Assim se expressou o amado Papa Bento XVI, no discurso de abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Aparecida.

Fazer que a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento cresçam é o modo cristão de promover o bem comum, a felicidade de viver. E aqui convergem a fé e a razão, a dimensão religiosa com os diversos aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura... O cristianismo une transcendência e encarnação; sempre revitaliza o pensamento e a vida, frente à desilusão e ao desencanto que invadem os corações e saltam para a rua.

2. O segundo elemento que queria tocar é a responsabilidade social. Esta exige um certo tipo de paradigma cultural e, consequentemente, de política. Somos responsáveis pela formação de novas gerações, capacitadas na economia e na política, e firmes nos valores éticos. O futuro exige de nós uma visão humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evitando elitismos e erradicando a pobreza. Que ninguém fique privado do necessário, e que a todos sejam asseguradas dignidade, fraternidade e solidariedade: esta é a via a seguir. Já no tempo do profeta Amós era muito forte a advertência de Deus: Eles vendem o justo por dinheiro, o indigente, por um par de sandálias; esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível. Os gritos por justiça continuam ainda hoje.

Quem detém uma função de guia deve ter objetivos muito concretos, e buscar os meios específicos para consegui-los. Pode haver, porém, o perigo da desilusão, da amargura, da indiferença, quando as aspirações não se cumprem. A virtude dinâmica da esperança que incentiva a ir sempre mais longe, a empregar todas as energias e capacidades a favor das pessoas para quem se trabalha, aceitando os resultados e criando condições para descobrir novos caminhos, dando-se mesmo sem ver resultados, mas mantendo viva a esperança.

A liderança sabe escolher a mais justa entre as opções, após tê-las considerado, partindo da própria responsabilidade e do interesse pelo bem comum; esta é a forma para chegar ao centro dos males de uma sociedade para vencê-los com a ousadia de ações corajosas e livres. No exercício da nossa responsabilidade, sempre limitada, é importante abarcar o todo da realidade, observando, medindo, avaliando, para tomar decisões na hora presente, mas estendendo o olhar para o futuro, refletindo sobre as consequências de tais decisões. Quem atua responsavelmente submete a própria ação aos direitos dos outros e ao juízo de Deus. Este sentido ético aparece hoje como um desafio histórico sem precedentes. Temos que inseri-lo na sociedade. Além da racionalidade científica e técnica, na atual situação, impõe-se o vínculo moral com uma responsabilidade social e profundamente solidária.

3. Para completar a reflexão, além do humanismo integral, que respeite a cultura original, e da responsabilidade solidária, considero fundamental para enfrentar o presente: o diálogo construtivo. Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo com o povo, porque todos somos o povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce, quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: cultura popular, cultura universitária, cultura juvenil, cultura artística e tecnológica, cultura econômica e cultura familiar e cultura da mídia. É impossível imaginar um futuro para a sociedade, sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fechada na pura lógica da representação dos interesses constituídos. Será fundamental a contribuição das grandes tradições religiosas, que desempenham um papel fecundo de fermento da vida social e de animação da democracia. Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade, favorecendo as suas expressões mais concretas.

Quando os líderes dos diferentes setores me pedem um conselho, a minha resposta é sempre a mesma: diálogo, diálogo, diálogo. A única maneira de uma pessoa, uma família, uma sociedade crescer, a única maneira para fazer avançar a vida dos povos é a cultura do encontro; uma cultura segundo a qual todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom. O outro tem sempre algo para nos dar, desde que saibamos nos aproximar dele com uma atitude aberta e disponível, sem preconceitos. A humildade é que favorece o diálogo. Só assim pode crescer o bom entendimento entre as culturas e as religiões, a estima de umas pelas outras livre de suposições gratuitas e no respeito pelos direitos de cada uma. Hoje, ou se aposta na cultura do encontro, ou todos perdem; percorrer a estrada justa torna o caminho fecundo e seguro.

Excelências, senhoras e senhores, agradeço-lhes pela atenção. Acolham estas palavras como expressão da minha solicitude de Pastor da Igreja e do respeito e afeto que nutro pelo povo brasileiro. A fraternidade entre os homens e a colaboração para construir uma sociedade mais justa não constituem uma utopia, mas são o resultado de um esforço harmônico de todos em favor do bem comum. Encorajo os senhores no seu empenho em favor do bem comum, que exige da parte de todos sabedoria, prudência e generosidade. Confio-lhes ao Pai do Céu, pedindo-lhe, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, que cumule de seus dons a cada um dos presentes, suas respectivas famílias e comunidades humanas de trabalho e, de coração, a todos concedo a minha Bênção. 

Muito obrigado.

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Papa critica a "cultura da exclusão"


PAPA FRANCISCO NO BRASIL





Papa fala na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro




Amados Irmãos em Cristo,

Vendo esta catedral lotada com bispos, sacerdotes, seminaristas, religiosos e religiosas, vindos do mundo inteiro, penso nas palavras do Salmo da Missa de hoje: "Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor" (Sl 66).

Sim, estamos aqui reunidos para glorificar o Senhor; e o fazemos reafirmando a nossa vontade de sermos seus instrumentos, para que não somente algumas nações mas todas glorifiquem o Senhor. Com a mesma paresia - coragem, ousadia - de Paulo e Barnabé, anunciemos o Evangelho aos nossos jovens para que encontrem Cristo, luz para o caminho, e se tornem construtores de um mundo mais fraterno. Neste sentido, queria refletir com vocês sobre três aspectos da nossa vocação: chamados por Deus; chamados para anunciar o Evangelho; chamados a promover a cultura do encontro.

1. Chamados por Deus. É importante reavivar em nós esta realidade que, frequentemente, damos por descontada em meio a tantas atividades do dia a dia: "Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi", diz-nos Jesus (Jo 15,16). Significa retornar à fonte da nossa chamada.

No início de nosso caminho vocacional, há uma eleição divina. Fomos chamados por Deus, e chamados para permanecer com Jesus (cf. Mc 3, 14), unidos a Ele de um modo tão profundo que nos permite dizer com São Paulo: "Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim" (Gal 2, 20). Este viver em Cristo configura realmente tudo aquilo que somos e fazemos.

E esta "vida em Cristo" é justamente o que garante a nossa eficácia apostólica, a fecundidade do nosso serviço: "Eu vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça" (Jo 15,16). Não é a criatividade pastoral, não são as reuniões ou planejamentos que garantem os frutos, mas ser fiel a Jesus, que nos diz com insistência: "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" (Jo 15, 4).

E nós sabemos bem o que isso significa: Contemplá-lo, adorá-lo e abraçá-lo, particularmente através da nossa fidelidade à vida de oração, do nosso encontro diário com Ele presente na Eucaristia e nas pessoas mais necessitadas. O "permanecer" com Cristo não é se isolar, mas é um permanecer para ir ao encontro dos demais. Vêm-me à cabeça umas palavras da Bem-aventurada Madre Teresa de Calcutá: "Devemos estar muito orgulhosas da nossa vocação, que nos dá a oportunidade de servir Cristo nos pobres. É nas favelas, nos 'cantegriles' nas Villas miseria, que nós devemos ir procurar e servir a Cristo. Devemos ir até eles como o sacerdote se aproxima do altar, cheio de alegria" (Mother Instructions, I, p.80). Jesus, Bom Pastor, é o nosso verdadeiro tesouro; procuremos fixar sempre mais n'Ele o nosso coração (cf. Lc 12, 34).

2. Chamados para anunciar o Evangelho. Queridos bispos e sacerdotes, muitos de vocês, senão todos, vieram acompanhar seus jovens à Jornada Mundial. Eles também ouviram as palavras do mandato de Jesus: "Ide e fazei discípulos entre todas as nações" (cf. Mt 28,19). É nosso compromisso ajudá-los a fazer arder, no seu coração, o desejo de serem discípulos missionários de Jesus. Certamente muitos, diante desse convite, poderiam sentir-se um pouco atemorizados, imaginando que ser missionário significa deixar necessariamente o País, a família e os amigos.

Recordo o meu sonho da juventude: partir missionário para o longínquo Japão. Mas Deus me mostrou que o meu território de missão estava muito mais perto: na minha pátria. Ajudemos os jovens a perceber que ser discípulo missionário é uma consequência de ser batizado, é parte essencial do ser cristão, e que o primeiro lugar onde evangelizar é a própria casa, o ambiente de estudo ou de trabalho, a família e os amigos. Não poupemos forças na formação da juventude! São Paulo usa uma bela expressão, que se tornou realidade na sua vida, dirigindo-se aos seus cristãos: "Meus filhos, por vós sinto de novo as dores do parto até Cristo ser formado em vós" (Gal 4, 19).

Também nós façamos que isso se torne realidade no nosso ministério! Ajudemos os nossos jovens a descobrir a coragem e a alegria da fé, a alegria de ser pessoalmente amados por Deus, que deu o seu Filho Jesus para nossa salvação. Eduquemo-los para a missão, para sair, para partir. Jesus fez assim com os seus discípulos: não os manteve colados a si, como uma galinha com os seus pintinhos; Ele os enviou! Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades, quando há tanta gente esperando o Evangelho! Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher, mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar.

Decididamente pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são convidados para a Mesa do Senhor.

3. Chamados a promover a cultura do encontro. Em muitos ambientes, infelizmente, ganhou espaço a cultura da exclusão, a "cultura do descartável". Não há lugar para o idoso, nem para o filho indesejado; não há tempo para se deter com o pobre caído à margem da estrada. Às vezes parece que, para alguns, as relações humanas sejam regidas por dois "dogmas" modernos: eficiência e pragmatismo. 


Queridos bispos, sacerdotes, religiosos e também vocês, seminaristas, que se preparam para o ministério, tenham a coragem de ir contra a corrente. Não renunciemos a este dom de Deus: a única família dos seus filhos. O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade e a fraternidade são os elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana.

Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro. Permitam-me dizer: deveríamos ser quase obsessivos neste aspecto! Não queremos ser presunçosos, impondo as "nossas verdades". O que nos guia é a certeza humilde e feliz de quem foi encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar de anunciá-la (cf. Lc 24, 13-35).

Queridos irmãos e irmãs, fomos chamados por Deus, chamados para anunciar o Evangelho e promover corajosamente a cultura do encontro. A Virgem Maria seja o nosso modelo. Na sua vida, Ela deu "exemplo daquele afeto maternal de que devem estar animados todos quantos cooperam na missão apostólica que a Igreja tem de regenerar os homens" (Conc. Ecum. Vat. II, Cost. dogm. Lumen gentium, 65). 


Seja Ela a Estrela que guia com segurança nossos passos ao encontro do Senhor.

Amém.


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Protestos nas ruas: neonazismo, fascismo, ladroagem...


DEMOCRACIA EM RISCO



"Do mar de gente em desfile pelos dias de junho já se ausentaram há muito os de boa fé, os lúdicos, os solidários com as iniciais demandas sobre transporte, até mesmo sobre saúde e educação, bem como os movimentos tradicionais organizados. Participam hoje dos protestos, fora os incautos e ingênuos que sempre existem e lhes emprestam ar de legitimidade, grupos anômicos de jovens de algumas posses, grupos neonazistas e pré-fascistas, organizações niilistas nacionais e internacionais, além das gangues ordinárias de ladrões e assaltantes. Os que agora se mobilizam e convocam sabem que são isso mesmo, portanto cúmplices entre si. Não há jovem do Leblon que ignore os saques e depredações que irão se seguir às suas intervenções ditas pacíficas. É a esta informal coalizão de celerados que se referem os acoelhados discursos pela modernidade, pelo avanço democrático em curso, pela radicalização da participação. Desde quando movimentos pela democracia difundem o medo e intimidam fisicamente os que divergem? Na verdade, a hegemonia da atual semântica política é niilista, reacionária, antidemocrática. Mesmo as manifestações em favor de teses populares adquirem conotação truculenta. Com todo o narcisismo de que são portadores, movimentos e personalidades de grande notoriedade não conseguem desfazer a impressão de que perderam o controle sobre o emocional da população. A conjuntura é fascistoide.



Democracia uma vírgula, anomia niilista

Wanderley Guilherme dos Santos


Milhões de pessoas foram projetadas a estações de consumo e lazer das quais nunca haviam tido sequer notícia. Passado o deslumbramento, expectativas ambiciosas cresceram em velocidade maior do que caíam taxas de juros e sinais inflacionários levando a audacioso endividamento das famílias. Por fim, a ressaca veio sob forma de aguda ansiedade sobre o futuro imediato, tornando-as vulneráveis aos anúncios de que crescimento econômico em torno de 3,0% significará desastre, desemprego generalizado e uma queda livre, sem rede de proteção, dos trapézios sociais alcançados.

Rápidos deslocamentos ascendentes desenraízam as pessoas da matriz societária original, provocando crises de identidade e desorientação quanto a valores, estando por serem substituídos os anteriores, desaprendidos. Max Weber apontou a reserva de ebulição aí depositada, tanto quanto nas crises de despenhadeiro, quando enormes contingentes de trabalhadores são despejados na escala social com destino à miséria e desesperança. E, ambos, períodos de extensa anomia social, insegurança quanto a rumos e subversão de critérios de avaliação e escolha social. Atração fatal à anomia, o niilismo, o negativismo militante candidata-se a acompanhante emocional, pacificador da insegurança dos segmentos desorientados.

Sequência já conhecida de manifestação popular reprimida com violência próxima à selvageria propiciou as condições de uma mobilização de simpatias, solidariedades e protestos claramente motivados pelo episódio paulistano de repressão ao Movimento do Passe Livre. Eram os jovens universitários, seus pais e familiares, usuários de transportes públicos, o público de boa vontade, atingido em seu sentido de justiça e de equilíbrio, além das minorias insidiosas de sempre: um nazismo renascente, proto fascistas, partidos autoritários como o PSTU, ou dado a aventuras como o PSOL, mais os predadores da democracia. Rápido, bem sucedido golpe de mão, juntando acaso e virtude, sequestrou a alma das ruas e infestou a evidente anomia com a inclinação niilista que a marcou desde então. Todas as palavras de ordem têm sido, a partir daí, pretexto para a desmoralização das instituições democráticas, assembleias, organizações sindicais, associações voluntárias específicas, partidos políticos, em nome de um alegado vanguardismo civilizatório.

O futurismo italiano foi um movimento revolucionário das artes gráficas no início do século XX. Dissolveu-se ideologicamente no fascismo gerado pela anomia decadentista da Itália dos anos 20, igualmente irmanado ao niilismo predatório. Assustados, os líderes institucionais do Brasil têm tomado a aparência pela verdade e multiplicado a tradução do que lhes parecem comunicar as vozes das ruas. Não existem, contudo, vozes das ruas, apenas alaridos. Não foram as cartolinas pintadas que levaram as primeiras multidões às passeatas, elas surgiram algum tempo depois das marchas em busca de um porquê das próprias marchas. A seco, melhoras genéricas da saúde pública ou da educação não estimulam o deslocamento de dezenas de milhares de manifestantes. Reforma política, então, nem em cartolina apareceu. Pesquisas de opinião durante ou logo depois do calor dos protestos são tecnicamente irrelevantes, não autorizam nenhum tipo de inferência confiável.

Do mar de gente em desfile pelos dias de junho já se ausentaram há muito os de boa fé, os lúdicos, os solidários com as iniciais demandas sobre transporte, até mesmo sobre saúde e educação, bem como os movimentos tradicionais organizados. Participam hoje dos protestos, fora os incautos e ingênuos que sempre existem e lhes emprestam ar de legitimidade, grupos anômicos de jovens de algumas posses, grupos neonazistas e pré-fascistas, organizações niilistas nacionais e internacionais, além das gangues ordinárias de ladrões e assaltantes. Os que agora se mobilizam e convocam sabem que são isso mesmo, portanto cúmplices entre si. Não há jovem do Leblon que ignore os saques e depredações que irão se seguir às suas intervenções ditas pacíficas. É a esta informal coalizão de celerados que se referem os acoelhados discursos pela modernidade, pelo avanço democrático em curso, pela radicalização da participação. Desde quando movimentos pela democracia difundem o medo e intimidam fisicamente os que divergem? Na verdade, a hegemonia da atual semântica política é niilista, reacionária, antidemocrática. Mesmo as manifestações em favor de teses populares adquirem conotação truculenta. Com todo o narcisismo de que são portadores, movimentos e personalidades de grande notoriedade não conseguem desfazer a impressão de que perderam o controle sobre o emocional da população. A conjuntura é fascistóide. A pauta trabalhista das centrais sindicais era a aparência para esconder uma real tentativa de retomar a alma das ruas. Foi uma manifestação chinfrim, o dia nacional de lutas, e não recuperou a hegemonia. Ficou apenas a impressão de que reclamava do governo a extinção do fator previdenciário e a realização de uma reforma política, entre outras bandeiras costumeiras, sem consequência significativa.

Há quem acredite no fundo da alma que alguma mazela nacional será resolvida por reformas nas instituições políticas. Esta é uma crença sem fundamento e, às vezes, como no momento, sujeita a exasperações histéricas. Só por circunstancial ausência de normalidade argumentativa pode-se entender declarações de inegável natureza controversa como se obviedades democráticas fossem. Em recente declaração em vídeo, ao final de um debate em um centro paulista, uma professora da USP, petista orgânica, afirmou que a estrutura partidária e eleitoral vigente, consagrada na Constituição de 88, foi elaborada em 1965 por Golbery do Couto e Silva, homem da ditadura. Sem dúvida, uma retificação histórica e tanto. Em texto na revista Carta Capital (17/julho/2013), um jornalista e paladino da democracia menciona um sonho em que assistia à convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, integrada pelas melhores cabeças do País. Não ficou esclarecido, contudo, qual colégio eleitoral substituiria os 140 milhões de eleitores brasileiros na escolha de suas melhores cabeças. Pior ainda, figuras profundamente reacionárias em matéria social e econômica, como as lideradas por Marina Silva, re-editam o discurso de que a maldade da política se encontra na existência de mediações entre o público e o privado, cujas fronteiras deviam ser abolidas. É o discurso totalitário em estado puro. Buscando o aplauso de míticas vozes das ruas muitos não mais escutam a própria voz.

É incompreensível a ênfase do governo e do Partido dos Trabalhadores na realização de um plebiscito por uma reforma política cuja formulação é, no mínimo, divisionista, castradora de avanços e omissa quanto à superação de resquícios da ditadura – por exemplo, garantindo elegibilidade aos analfabetos, tema sem nenhuma audiência entre nossos democratas radicais e digitais. Incompreensível, sobretudo, quando a pauta vital do País, no momento, está sendo disputada taxa de retorno a taxa de retorno nas licitações por vir nos setores ferroviário, aeroviário, rodoviário e portuário, além dos leilões do petróleo. Disso dependem renda, emprego, crescimento, políticas sociais e progresso tecnológico. Sujeito a um cerco infernal de pressões, lobbies e, quiçá, seu tanto de sabotagem por parte de alguns empresários e investidores, o governo substitui esta pauta por um prato diversionista, com o bônus de propiciar aos adesistas a esfarrapada desculpa de que o Estado, o modelo de crescimento (denominação presunçosa), os instrumentos de administração estão esgotados. Baboseiras de quem está costeando o alambrado do conservadorismo.

As forças sociais estão anômicas. Difícil saber em que medida a epiderme niilista reflete o sentimento majoritário da população (pesquisas, no momento, são inúteis para extrapolações), submetida a uma avalanche de informações sem fonte de credibilidade assegurada. As respostas oficiais, exceto em parte a dos parlamentares, acentuo, exceto em parte a dos parlamentares, têm contribuído para ratificar a ilusão de um aprofundamento da democracia que, de fato, em sua versão expressiva e comportamental, consiste em seu oposto, na intolerância, na destruição e no ódio que contaminam as mensagens das ativas redes sociais. Quanto mais cedo se mobilizar a resistência democrática ao niilismo anômico, melhor.

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