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sábado, 14 de abril de 2012

Poder Judiciário: "Vaidade das vaidades..."

"Tudo é vaidade", como diz o sábio texto bíblico. Eu, modestamente, acrescentaria: Vaidade e Interesse. Tudo é também Interesse.

Reiterando o que afirmei no post da última quinta-feira, 12 (leia abaixo), é também a Linguagem Jurídica manifestação de um Judiciário arcaico, vetusto, obscuro, aristocrático, refratário a mudanças e antidemocrático.

A quem interessa tudo isso, a não ser às elites?

Felizmente já há transformações em andamento. A Primavera Judiciária teve início no final do ano passado, com o "furacão" Eliana Calmon. A aguerrida ministra, Corregedora Nacional de Justiça, que cunhou a célebre expressão "Bandidos de Toga", em suas manifestações midiáticas vem colaborando muito para a dessacralização do mais arrogante dos poderes da República, ao levar para a sociedade temas jurídicos de interesse público, escancarando por vezes as graves mazelas existentes dentro do Judiciário.

Mas há muita água ainda para correr por debaixo da ponte...

Por um Judiciário aberto, limpo, transparente, moralizado, livre dos cancros da corrupção e com acesso amplo ao cidadão!





Linguagem jurídica - Uma porta (fechada) para o acesso à justiça


Adilson de Carvalho, Mestre em Teoria Literária (UnB).

Não há atividade profissional que exerça mais fascinação e seja mais atraente, pelo menos no Brasil, quanto aquelas ligadas ao universo jurídico. Advogados, juízes, desembargadores, membros do Ministério Público exercem nas pessoas uma espécie de reconhecimento imediato de nobreza e de autoridade, como se esses profissionais realmente fizessem parte de uma realidade metafísica e sagrada.


Parte da explicação para essa altíssima cotação das atividades jurídicas no mercado simbólico da cultura brasileira está no poder real que esse universo exerce na estrutura de poderes do Estado brasileiro. Em um país com uma Constituição escrita, com mais de trezentos artigos, mais um emaranhado de centenas de milhares de leis, de cuja interpretação depende todas as relações sociais, políticas e econômicas de toda a população, é evidente que o universo jurídico representa, efetivamente, um espaço de extremo poder.

Como acontece em qualquer espaço de poder, o acesso a esse universo não é franqueado a qualquer um. Por ter consciência da importância do grupo de que fazem parte, aqueles que têm o privilégio de pertencerem ao mundo jurídico fazem de tudo para que esse mundo sagrado não seja profanado pela presença dos não-iniciados. Na promoção dessa separação fundamental entre quem faz e quem não faz parte do mundo jurídico, entra em ação um conjunto de elementos, que são tão mais eficazes quanto menos são percebidos como aparatos de segregação.

Assim, o uso de vestes talares nos tribunais, as formalidades excessivas dos ritos judiciários, o tratamento de doutor , exigência obrigatória para se dirigir a qualquer membro do universo jurídico [grande equívoco, é bom que se diga - ABC!], entre outros elementos, atuam em conjunto para reforçar sempre a idéia de que o universo jurídico é mesmo uma realidade à parte em relação ao resto da sociedade. Além do mais, e principalmente, esses elementos contribuem de forma significativa para criar uma absurda barreira entre o mundo do direito e as pessoas comuns, em potencial usuários da prestação jurisdicional.

Nesse processo de violência simbólica que "protege" o mundo jurídico do acesso de grande parte da população nada é tão eficaz quanto a linguagem jurídica. Trata-se da maneira específica que magistrados, advogados, promotores e outros do ramo do direito têm utilizado a linguagem e que, a despeito de qualquer argumento a favor, só tem servido para negar o acesso ao universo jurídico à maioria da população do Brasil.

Para se entender como se dá esse gigantesco problema, é preciso começar lembrando o que vem a ser língua e como as pessoas comumente a consideram. É comum se ouvir a afirmação de que se trata de um sistema, por meio do qual se dá a comunicação entre as pessoas de uma dada comunidade. Essa noção de linguagem, no entanto, embora seja bastante comum, se não é abertamente equivocada, é pelo menos incompleta porque, mesmo que seja possível ver a linguagem como um sistema abstrato por meio do qual seja possível trocar informações, é um reducionismo maldoso ou ingênuo considerar que ela seja só isso.

Essa noção é simplista porque não dá conta da complexidade de fatores que envolvem o uso da língua: a língua pode até servir para comunicar, mas há casos, e parece ser este o caso da linguagem jurídica, em que ela serve exatamente para não comunicar. Na maneira de escrever dos meios jurídicos há todo um cuidado em moldar a linguagem e ornamentá-la de uma maneira tal que ela passa a ser um código, cuja compreensão está ao alcance apenas do pequeno grupo que faz parte do universo jurídico.

Os pareceres, sentenças, petições etc. são escritos de uma forma tal que se torna impossível a compreensão desses textos por alguém que não faça parte do meio jurídico. E esse parece ser mesmo o propósito dos produtores desses textos: dificultar a compreensão para quem não teve a sorte ou herança de fazer parte da casta jurídica.

Se essa afirmação assim categórica parece um exagero, então seria bom que se apresentassem argumentos realmente convincentes para justificar o uso pelos meios jurídicos de uma linguagem extremamente pedante, barroca e afetada, recheada de expressões em latim ou em outras línguas estrangeiras, quando a situação requereria exatamente o contrário: uma linguagem o mais simples e
objetiva possível, para que qualquer usuário do sistema judiciário possa compreender.

Não há, por exemplo, qualquer razão plausível que explique o uso na
Constituição, nas leis e nos demais textos jurídicos, de expressões como ex tunc, em vez de efeito retroativo; habeas corpus, em vez de direito à liberdade; ad hoc, em vez de substituição temporária; in loco, em vez de no local; jus sanguinis, em vez de direito de sangue; e tantos outros usos igualmente pedantes, a não ser o exercício de uma linguagem que possa separar iniciados e não-iniciados.

É certo que não faltam livros, páginas na internet, cursos, programas de rádio e TV para explicar ao público comum o significado das expressões jurídicas; mas por que, em vez disso, se a intenção fosse mesmo aproximar o público comum do mundo jurídico, não se adota, de dentro para fora, uma linguagem que o povo possa compreender?

O Poder Judiciário e o Ministério Público passam por uma onda de transformações que, pelo menos teoricamente, visam torná-los mais eficientes, transparentes e democráticos; para isso foram criados, por exemplo, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça. Seria um grande começo se a questão da linguagem jurídica fosse colocada na pauta desses órgãos como um problema a ser solucionado. E, claro, para começar a buscar caminhos para que a linguagem jurídica deixe de ser uma barreira à Justiça, é preciso, primeiro, que ela seja realmente vista como um problema a ser resolvido.

Resistências não vão faltar, já que além de pressupor uma redivisão de poder, a democratização do acesso à Justiça pela transformação da linguagem jurídica também acabaria mexendo com a vaidade historicamente construída e intocada de muitos membros desse universo. Mas se há realmente pessoas preocupadas em transformar o Judiciário e o Ministério Público em instituições democráticas e eficazes, não há como ignorar o problema da linguagem. Para os que não têm nenhum compromisso com a democratização do acesso à Justiça é mesmo interessante que o universo jurídico continue falando pra si mesmo.


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