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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O pseudojornalismo da Veja (de novo...)

 

Veja: má vontade e preconceito conduzem à cegueira



Resposta do ministro Jorge Hage a editorial de balanço da revista Veja:

Brasília, 27 de dezembro de 2010.
Sr. Editor,
Apesar de não surpreender a ninguém que haja acompanhado as edições da sua revista nos últimos anos, o número 52 do ano de 2010, dito de “Balanço dos 8 anos de Lula”, conseguiu superar-se como confirmação final da cegueira a que a má vontade e o preconceito acabam por conduzir.
Qualquer leitor que não tenha desembarcado diretamente de Marte na noite anterior haverá de perguntar-se “de que país a Veja está falando?”. E, se o leitor for um brasileiro e não integrar aquela ínfima minoria de 4% que avalia o Governo Lula como ruim ou péssimo, haverá de enxergar-se um completo idiota, pois pensava que o Governo Lula fora ótimo, bom ou regular. Se isso se aplica a todas as “matérias” e artigos da dita retrospectiva, quero deter-me especialmente às páginas não-numeradas e não-assinadas, sob o título “Fecham-se as cortinas, termina o espetáculo”. Ali, dentre outras raivosas
adjetivações (e sem apontar quaisquer fatos, registre-se), o Governo Lula é apontado como “o mais corrupto da República”.
Será ele o mais corrupto porque foi o primeiro Governo da República que colocou a Polícia Federal no encalço dos corruptos, a ponto de ter suas operações criticadas por expor aquelas pessoas à execração pública? Ou por ser o primeiro que levou até governadores à cadeia, um deles, aliás, objeto de matéria nesta mesma edição de Veja, à página 81? Ou será por ser este o primeiro Governo que fortaleceu a Controladoria-Geral da União e deu-lhe liberdade para investigar as fraudes que ocorriam desde sempre, desbaratando esquemas mafiosos que operavam desde os anos 90, (como as Sanguessugas, os Vampiros, os Gafanhotos, os Gabirus e tantos mais), e, em parceria com a PF e o Ministério Público, propiciar os inquéritos e as ações judiciais que hoje já se contam pelos milhares? Ou por ter indicado para dirigir o Ministério Público Federal o nome escolhido em primeiro lugar pelos membros da categoria, de modo a dispor da mais ampla autonomia de atuação, inclusive contra o próprio Governo, quando fosse o caso? Ou já foram esquecidos os tempos do “Engavetador-Geral da República”?
Ou talvez tenha sido por haver criado um Sistema de Corregedorias que já expulsou do serviço público mais de 2.800 agentes públicos de todos os níveis, incluindo altos funcionários como procuradores federais e auditores fiscais, além de diretores e superintendentes de estatais (como os Correios e a Infraero). Ou talvez este seja o governo mais corrupto por haver aberto as contas públicas a toda a população, no Portal da Transparência, que exibe hoje as despesas realizadas até a noite de ontem, em tal nível de abertura que se tornou referência mundial reconhecida pela ONU, OCDE e demais organismos internacionais.
Poderia estender-me aqui indefinidamente, enumerando os avanços concretos verificados no enfrentamento da corrupção, que é tão antiga no Brasil quanto no resto do mundo, sendo que a diferença que marcou este governo foi o haver passado a investigá-la e revelá-la, ao invés de varrê-la para debaixo do tapete, como sempre se fez por aqui.
Peço a publicação.
Jorge Hage Sobrinho
Ministro-Chefe da Controladoria-Geral da União

Lula: Mito, Glória Nacional ou um Brasileiro Igualzinho a Você...

Mais um ponto de vista (ou vários), algumas reflexões, para pensar o governo Lula.


Nada será como antes

(do Portal do Estado/25.12.2010)


Nunca antes na história deste País houve um presidente como Luiz Inácio Lula da Silva. Encerrada sua dupla presidência, nada será igual. O País que ele nos deixa é outro, para o bem e para o mal. Nem melhor, nem pior, simplesmente diferente. Lula fez e desfez, aconteceu, circulou e apareceu, mudou o discurso do poder e o modo como a opinião pública se relaciona com seus governantes, pacificou e articulou os mais distintos interesses sociais, a ponto de sair de cena como uma espécie inusitada de glória nacional. Deixou marca tão forte na política, na administração pública e no imaginário popular que será preciso um tempo para assimilarmos sua ausência.
Zé Otávio
Zé Otávio

Lula não teve a grandeza fundacional e paradigmática de um Vargas, verdadeiro artífice do Brasil moderno, que ele forjou mediante um padrão de intervenção estatal e um “pacto” ainda hoje vigentes. Não trouxe o charme nem o dinamismo de JK, com sua fantasia industrializante de recriar o País, fazendo 50 anos em 5. Nem sequer seria justo aproximá-lo de Fernando Henrique Cardoso, cujo refinamento intelectual fazia com que conhecesse a estrutura do País que pretendeu administrar.

Mas Lula foi diferenciado. A começar do estilo. Falastrão, debochado, emotivo, avesso a protocolos e a regras gramaticais, demarcou um território. Líder metalúrgico, filho humilde do Brasil profundo, encontrou uma fórmula eficiente de dialogar com as grandes multidões, valendo-se da exploração de uma espontaneidade que o levou a ser tratado como um brasileiro igualzinho a você, predestinado a promover a ascensão dos pobres graças à magia de uma identificação imediata. Por ter vindo “de baixo” e carregado a cruz do sofrimento, Lula saberia como atender os pobres. A precariedade da formação intelectual e a falta de gosto por leituras ou estudos sistemáticos seria compensada pela percepção intuitiva das carências sociais. Ponha-se nisso uma pitada de sagacidade e se tem a lapidação de um mito.

O estilo Lula de ser presidente caminhou sempre de braços dados com glorificação e a autoglorificação. Foi assim, aliás, que ele abriu caminho no PT. Soube usar a aura que o cercou no final dos anos 70, quando despontou como expressão de um “novo sindicalismo” que irrompia numa sociedade silenciada pela ditadura e disponível para se emocionar com a movimentação dos operários do ABC paulista. Criou-se assim o signo do trabalhador que se impõe a políticos, estudantes e intelectuais para fundar um partido diferente, uma política de outro tipo, um novo discurso, um distinto modo de deliberar e agir. O bordão “nunca antes na história”, na verdade, nasceu ali, colando-se a sua trajetória.

O estilo sempre esteve próximo da egolatria e da autossuficiência, combinadas com uma enorme vontade de agradar a todos. Lula nunca reconheceu erros ou cultivou a modéstia. Sua vida teria transcorrido numa sucessão de eventos positivos, modelados por seu discernimento, seu sacrifício e seu espírito de luta. Outros erraram, companheiros inclusive; ele no máximo foi enganado ou ficou imobilizado por perseguições e preconceitos.

Mas é impossível diminuir o tamanho real do personagem. Num País em que as elites políticas, econômicas e intelectuais, apesar de não terem conseguido governar com generosidade, nunca largaram as rédeas do governo, a irrupção de um metalúrgico no Planalto deve ser compreendida sem ira nem ressentimento. Tratou-se de um fato excepcional, desses que podem efetivamente sinalizar que algo novo começou a trepidar no chão da vida cotidiana.

A chegada de Lula ao poder não foi obra do desígnio divino, nem derivou exclusivamente de seu carisma ou mérito pessoal. Muita gente se empenhou para isso e a operação exigiu algum sacrifício. O PT, por exemplo, trocou sua identidade operária pela possibilidade de projetar um operário na cúpula do Estado. Depois de ter se recusado a jogar o jogo da redemocratização do País, o partido passou a defender as regras formais e informais do sistema político. Afastou-se dos compromissos de esquerda. Depurado de combatividade e eixo, ficou refém de seu mais conhecido expoente. Alguma semelhança com o papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes no velho PCB não é mera coincidência.

A estratégia foi auxiliada pelos fatos da vida. Houve o governo FHC, que venceu a inflação e lançou a plataforma de uma sociedade mais educada para a racionalidade econômica e mais sensível à necessidade de centralizar a questão social. Lula beneficiou-se, também, da consolidação democrática, da expansão da economia internacional e do que isso trouxe de espaço para o crescimento da economia brasileira. Tudo ajudou as políticas públicas a ganhar nova preeminência e incluir o combate às zonas de miséria e pobreza que devastam a sociedade.

Exagera-se muito na avaliação que se faz de Lula. Na apreciação do que há de positivo em seu governo, nem sempre se dá o devido valor à equipe técnica e política que o assessorou. O bloco de sustentação e a amplíssima coalizão de interesses que montou não se deveram a uma incomum habilidade de negociador, mas sim à recuperação do Estado como agente, à disseminação de práticas generalizadas de composição parlamentar e a uma “racionalidade” dos próprios interesses, que pactuaram para ganhar um pouco mais ou perder um pouco menos. Uma “nova classe média” apareceu, impulsionada pelas facilidades do crediário, pelos programas de transferência de renda e pela impressionante mobilidade da sociedade. Mas não mudou a face do País.

A presidência Lula se completou com a eleição de Dilma Rousseff, sua maior criação. O “animal político” nascido no ABC mostrou que tem corpo e vontade própria. Já não depende mais de um partido para se afirmar e pode almejar ser fiador do novo governo.

Mas nada é tão simples como parece. Todo governante constrói sua biografia e a lógica da política o impele a buscar luz autônoma. Uma hipótese realista sugere que haverá um suave descolamento entre Lula e Dilma. Disso talvez nasça um governo mais ponderado e equilibrado, capaz de substituir a presença de um líder carismático e intuitivo pela determinação e pelo rigor técnico que são indispensáveis para que se possa construir uma sociedade mais igualitária.

Lula entrou para a galeria política brasileira. Mas não inventou a roda, nem começou do zero. Não fará tanta falta quanto imagina ou imaginam. Sua passagem para os bastidores do sistema, ainda que temporária, poderá propiciar uma lufada de oxigênio na política e na dinâmica social, ajudando-as a adquirir mais espontaneidade e a pressionar por agendas de novo tipo.

Nada será como antes, é verdade, mas ninguém lamentará nem se vangloriará disso.

Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp e autor de O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política (Paz e Terra).